terça-feira, 23 de setembro de 2008

«As misteriosas caixas negras dos museus portugueses»

in Público, 23 de Setembro de 2008

As colecções de instrumentos científicos dos museus e instituições científicas portuguesas foram visitadas pelos maiores especialistas do mundo durante uma semana. Há instrumentos que ganharam nome e relíquias reveladas.

Entre as cerca de 15 mil peças que compõem a reserva do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa, três centenas delas permaneciam por catalogar. Autênticas peças mistério que ninguém sabe o que são ou para que servem. Assim foi até à semana passada. Foi quando chegaram os cerca de 120 especialistas convidados do 27º simpósio da Scientific Instrument Comission. Conseguiram identificar 15 dos instrumentos mistério. E gostaram do que viram.

Há um antes e o depois desta visita dos maiores especialistas mundiais em instrumentos científicos, que correram as reservas dos museus científicos portugueses ao longo da semana passada. É o que defende Marta Lourenço, do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, instituição que acolheu o simpósio."São os maiores especialistas. Vêm preparados, com luvas de algodão puro e lupa no bolso, como nos filmes, pedem chaves de parafusos e viram de pernas para o ar os instrumentos dos quais se desconhece a função ou a história. E decifram-nos".

Foi assim com 20 instrumentos "mistério" que a equipa do Museu de Ciência escolheu entre os 300 que não conseguia identificar. Foram todos expostos numa vitrina. E mostrados ao grupo de especialistas. "Imediatamente viraram-se para um e disseram - este é um polarímetro", diz Marta Lourenço que acrescenta que se tratam de objectos muito gastos pelo uso ao longo dos anos na instituição que já foi Noviciado da Cotovia (Séc. XVII), Colégio dos Nobres (Séc. XVIII) e Escola Politécnica (Séc. XIX), todas elas instituições que marcaram o ensino das ciências em Portugal. E que depois acolheu a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa antes desta se mudar para o pólo do Campo Grande. As últimas aulas só acabaram ali no início já do século XXI. Sobre a vasta colecção do Museu de Ciência Marta Lourenço revela aquela que é a opinião dos especialistas que se reuniram em Lisboa: "Temos pelo menos cinco instrumentos únicos no mundo".

Colecções escondidas
Ana Eiró, directora do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa, que acompanhou o périplo dos especialistas em instrumentos científicos pelo país, lembra o fascínio de muitos deles pelas colecções que visitaram, do gabinete de física da Universidade de Coimbra à colecção de instrumentos científicos do Instituto Superior Técnico. Aqui, a colecção de cerca de cinco mil instrumentos da instituição foi tão elogiada que o presidente Carlos Matos Ferreira mostrou vontade de tentar criar um pequeno museu para que possam ser apreciadas por todos, algo que não é possível actualmente. O que estes especialistas fazem é extrair história da ciência a partir dos instrumentos científicos. "Há muitos instrumentos que não se conseguem perceber bem", diz Ana Eiró. "Mesmo que se saiba para que servem, a sua datação e quem os construiu não sabemos a sua história, como aqui vieram parar e por que mãos já passaram. É o conhecimento profundo de história da ciência destes especialistas que ajuda a recuperar a história perdida".

Paolo Brenni, do Museu de História da Ciência de Florença e presidente da Comissão de Avaliação de Instrumentos Científicos, lembrou, numa intervenção realizada no último dia da visita do grupo de especialistas a Lisboa, a importância de se inventariar as colecções de instrumentos de ciência pelo mundo, a bem da história: "Há colecções esquecidas e negligenciadas", apesar de frisar que nos últimos 25 anos termos aprendido muito sobre o que os instrumentos científicos nos podem contar. "Mas há muito para explorar ainda nesta área."Por sua vez John Heilbron, especialista em história da física e da astronomia, um dos maiores especialistas mundiais em instrumentos científicos, actualmente a leccionar na Universidade da Califórnia, em Berkeley, alertou, na mesma conferência de encerramento, para o perigo das "caixas negras", onde são guardados os instrumentos científicos sem que se possa, à luz do dia, revelar e mostrar o seu valor às massas. "Há que combater esta filosofia de caixa negra, que permaneceu impune durante anos e que só é vencida quando conseguimos mostrar a força dos instrumentos".

Stephen Johnston veio do Museu de História da Ciência da Universidade de Oxford, no Reino Unido, instituição que detém a maior colecção de astrolábios planisféricos do mundo. E no sábado deixou-se fascinar precisamente por essa força dos instrumentos referida por Heilbron. Johnston ouvia atentamente as lições do comandante José Manuel Malhão Pereira sobre as particularidades do astrolábio náutico, a adaptação do astrolábio feita pelos navegadores portugueses, que o usavam para "pesar o sol", como diziam os navegadores. A expressão vem do facto do peso do instrumento símbolo dos descobrimentos concentrar o peso na parte inferior e ser usado quase como um fio-de-prumo para medir a altura dos astros. Era a partir daí que era traçada a localização, talvez não muito precisa, mas que servia bem as necessidades das viagens dos descobrimentos. Malhão Pereira, que é oficial da Armada, mestre em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa e investigador do Centro de História da Ciência da Universidade de Lisboa, é coleccionador de réplicas de instrumentos náuticos portugueses "Mando fazer as minhas réplicas aos únicos três artesãos que os fabricam ainda". Usa-os para dar aulas e para "experimentar". "Os instrumentos são vistos mas raramente experimentados", afirma.
Johnston não podia estar mais de acordo: "Todos os miúdos da escola deviam ter um astrolábio", disse, de chapéu na cabeça, sob o Sol quente que batia no terraço do Museu de Ciência, de onde se pode avistar toda a cidade de Lisboa e o rio Tejo. "Um dia estava a explicar a um amigo como é que o astrolábio funcionava e ele exclamou passado um bocado: 'Isto é um relógio!' Mas é muito mais do que isso, é uma máquina do tempo. E é ecológico, não usa pilha ou qualquer outra energia a não ser a do Sol. É o que eu costumo explicar aos meus filhos", remata.Entre a colecção de astrolábios do museu de Oxford existe apenas um astrolábio náutico. "Veio de um navio espanhol naufragado", acrescenta Johnston. Existirão, segundo Malhão Pereira apenas 64 astrolábios náuticos em todo o mundo. A maior colecção pertence ao Museu de Marinha, em Belém, onde estão oito. Também por lá passaram os especialistas em instrumentos científicos durante a visita a Lisboa.
FOTO: Fachada da Escola Politécnica pelo fotógrafo Augusto Bobone (1852-1910). Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal.

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